Bebendo café com açúcar

Juliana Auler
7 min readJul 27, 2021

Existem pessoas que pensam demais. Eu, com certeza, faço parte desse ilustre grupo. Esse texto é um resultado de uma dessas coisas da vida que me fez pensar demais.

O ano era 2019, já era final do ano, dezembro. 2019 foi um ano particularmente agitado, tanta coisa acontecia que eu só fui no embalo. Já naquele momento de energia quase esgotando, mas já de férias, estava bebendo café com minha mãe quando ela me perguntou “você realmente gosta de café sem açúcar?”. Eu olhei, pensei um pouco e resolvi colocar açúcar no meu café.

Eu comecei a beber café em 2011. Estava num consultório médico com meu pai e resolvi provar, para passar o tempo. Ele me sugeriu que eu tomasse sem açúcar e fui lá e tomei. A história sobre essa ida ao médico poderia ser uma das grandes histórias que a gente conta, mas como a maior parte das grandes histórias, essa vai ser deixada de lado por hora. Foi a primeira vez que gostei de beber café na vida e segui assim, tomando café sem açúcar, quase todos eles, menos café com leite ou capuccino.

A partir daí, dá para dizer que eu sempre gostei de café. O hábito mesmo começou a vir no ensino médio, quase todos os dias eu comprava na cantina (bons tempos, 50 centavos meio copo, mas a Teresa sempre fazia pra mim 50 centavos o copo cheio). Na faculdade comecei a virar a pessoa que não consegue ficar sem porque parece que “o motor não liga”. Até tentei reduzir, mas também vou deixar essa parte para outra hora. O que importa agora é que mais que gostar de café, o importante era todo o simbolismo que tomar sem café trazia.

Apesar de eu achar que minha personalidade foi bem constante ao longo dos anos, é lógico que na adolescência a gente quer se reafirmar. O café sem açúcar era essencial na construção do meu personagem, eu me sentia uma pessoa culta, de gola rolê, óculos, lendo algum clássico da literatura russa. Era quase como se beber café sem açúcar me deixasse mais interessante, inteligente e também com gosto mais refinado. Eu não queria ser o tipo de pessoa que quer um doce e come um pacote de m&m, eu queria parecer a pessoa que uma tirinha de chocolate 80% já fica perfeito pra matar a vontade de doces. O café com açúcar não passava essa imagem, ele é muito mais um “cafezinho” de meio da tarde, com bolo de fubá, que sim, eu acho uma delícia, mas assim, às vezes a gente está muito mais preocupado com a nossa imagem do que outra coisa. Na adolescência então, isso se potencializa, e eu só fui parar com o café sem açúcar com 21.

É lógico que eu já tinha tomado café com açúcar em inúmeras ocasiões, no início eu sempre falava que detestava e às vezes até recusava. Mais recentemente eu sempre dava um jeito de tomar, dava alguma desculpa tipo “café fraco fica melhor com açúcar”, dentre outras. Posso dizer que às vezes tomava escondido com a justificativa de “deu vontade dessa vez”. Ninguém estava me vigiando, eu sei disso, mas às vezes é bem mais fácil ter que lidar com a fiscalização alheia do que aquele sentimento de culpa que me dava.

Eu buscava no café sem açúcar, e em muitas outras coisas, o que a gente é muito muito levado a buscar: a melhor versão de nós mesmos. E foi começando a beber meu café docinho que eu fui começando a perceber que essa bendita melhor versão de nós mesmos é uma grande mentira. Eu já tinha um embrião ali daquele pensamento quando eu conheci uma simbologia muito interessante que é a Roda da Fortuna.

Bem resumidamente, já que eu não sou uma grande conhecedora da roda da fortuna, apenas uma curiosa, a ideia é não existe uma grande permanência na vida. Às vezes estamos como o rei em cima da roda, estáveis, bem, com “sucesso”, aí começamos a “cair”, até chegar no ponto mais baixo, e depois começamos a seguir. A grande questão seria tentar agir de acordo com a ideia de que quando estamos mal uma hora passa, e quando estamos bem também. Enfim, não existe esse ponto mágico perfeitamente estático onde tudo sempre vai dar certo.

Voltando ao café, apesar de mais feliz, eu tive uma GRANDE crise de identidade. Quem era a verdadeira Juliana? O que ela realmente gostava, procurava, eu queria fazer apenas coisas que alimentassem essa grande versão de mim mesma, como se eu pudesse tomar cinco ou dez atitudes que fossem gradativamente me levando ao meu máximo potencial. Eu não queria mais perder tempo fazendo coisas que não fossem puramente autênticas. Eu olhava para minhas roupas e achava que elas não expressavam quem de fato eu era, olhava para minhas fotos no instagram e queria arquivar a maioria porque aquele feed não passava a imagem da Juliana de fato, eu olhava pros livros que estava lendo e todos pareciam errados.

As pessoas ao meu redor, tanto as que convivia quanto as que só via em redes sociais pareciam todas ter descoberto essa coisa misteriosa que as fazia expressar exatamente quem elas eram, e eu ali, sem graça, sem conseguir cada pequena coisa milimetricamente pensada para passar ao mundo exatamente a imagem que eu queria. Lá estava eu, de novo, obcecada por passar uma imagem perfeita de mim mesma. Além de irreal, fantasiosa, eu fui percebendo que a Juliana Verdadeira era uma chata, porque passar o tempo todo tentando passar uma imagem é absolutamente chato.

Como disse lá no início, eu penso demais, e foi no exato instante que percebi que eu nunca ia chegar na Juliana Verdadeira (isso foi em janeiro de 2020) que eu comecei a pensar em tudo que eu fazia. Só que diferente. Eu sempre falei que queria correr todo dia de manhã com meu casaquinho de corrida chique, novamente, eu não queria correr porque parecia uma atividade física legal, mas porque parecia bonito correr todo dia de manhã. As roupas que eu achava que iam representar a Juliana Verdadeira não eram exatamente as roupas que eu achava confortáveis.

Cada uma das pequenas coisas era como se eu tivesse tentando reproduzir algo que vi em algum lugar, que vi alguma pessoa fazendo. Eu estava desesperada para fazer o que eu achava que várias pessoas que eu via (as que liam os livros certos, usavam roupas bonitas e corriam de manhã) tinham chegado lá. E foi aí que eu comecei a destinar boa parte da minha energia a não tentar mais chegar lá.

O Chegar Lá não tem um significado definitivo, para algumas pessoas é achar o amor, casar e ter uma família, para outras é chegar num determinado peso, para outras é ganhar x por mês e ter 4 pós doutorados, ou um conjunto de vários fatores. O que importa é que a vida toda a gente tem que se esforçar para chegar lá. Voltando lá para roda da fortuna, como se nosso lá fosse um ponto onde a roda para de ser uma roda e vira uma reta, quando nos tornamos imunes dos problemas porque a gente já está lá, a busca acabou.

E a busca não para. Porque a melhor versão de nós nunca chega. Você emagrece 15 kgs, mas não tem uma casa, você compra a casa, mas não estudou o suficiente, você estudou, mas já engordou de novo, emagrece, mas o emprego não é aquela coisa. Sempre falta, você não chega lá, nunca. Eu sei que parece que eu estou querendo dizer que a gente não tem que ter objetivos, mas não é isso. Eu tenho alguns e acho importante termos, viver é ter que se colocar em movimento. Minha única questão é que não tem uma linha de chegada, porque se você chegar lá, não tem mais para onde ir? Acabou?

Indo para um degrau mais embaixo, acho muito importante o exercício de refletir porque queremos o que queremos. Essa não é uma resposta tão simples, que vem pronta ou ainda que eu possa responder por outra pessoa, eu mal sei dizer o porquê quero as coisas que quero. No geral a gente busca muito nossa melhor versão, e eu acho que o caminho de se auto aperfeiçoar, ter objetivos é muito importante. Mas é importante que isso seja genuíno, não algo que vá “agregar valor à nossa imagem”, não porque existe uma régua do que é válido ou não, mas quando a gente fica dizendo sim para coisas que queríamos dizer não e vice-versa no mínimo ficamos com indigestão.

Foi aí que eu fui parar na terapia, estava sendo muito angustiante porque às vezes eu ainda estava obcecada na Juliana Verdadeira, às vezes eu ficava dizendo sim e não para o que não queria e, com certeza, raramente fazia alguma coisa porque achava que aquilo é o que é melhor a se fazer.

Tem sido um caminho interessante tentar agir de forma a pensar no resultado. Por exemplo, tentar comer bem porque faz bem ao meu corpo, não porque eu vou tirar uma foto bacana do meu café da manhã, ler um livro porque eu quero, não porque eu poder falar sobre ele no futuro e as pessoas vão me achar mais inteligente/interessante. Isso vai muito no sentido também de aceitação. Eu vejo muito nos últimos anos uma coisa de aceitação ser se olhar no espelho e pensar “putz, sou perfeita”, mas enfim, eu tenho encarado aceitação mais como aceitar que nem sempre eu vou ter coisas super interessantes a falar e que provavelmente erro mais que acerto.

Nesse sentido, parar de tentar chegar lá me faz me sentir melhor com o que sou. Porque a pessoa que eu sou hoje é a única que existe. Pode ser que em 10 anos eu tenha feito coisas super interessantes e seja mais feliz, ou não. Mas não vai ser minha linha de chegada. Todo dia eu paro e penso que a pessoa que eu sou é a única que eu poderia ser, nesse momento. E todas as pessoas que eu penso que chegaram lá com certeza tem suas questões, e por mais que pareça, aposto que tem chances altas delas também não acharem que chegaram lá.

Fora que a gente tem que parar de ranquear as pessoas… Essa parte fica para a próxima

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Juliana Auler

Formada em português, militante, tentando sobreviver nesse capitalismo tardio (taurina com sol e lua em touro e ascendente em gêmeos pra quem se interessar)